segunda-feira, 8 de junho de 2015


A MENINA QUE PODIA TUDO

Texto: Maria Helena Cruz Pistori
Ilustrações: Maria Rita




Era um dia cinzento, como qualquer outro. Isto quer dizer, parecia cinzento.
A menina estava em casa, sozinha. Sem irmãos, sem amigas. Só a mãe. A mãe, é claro que estava trabalhando: cozinhando, costurando e cantando (ou assobiando) alegremente o tempo todo.
Maria chega-se a ela e pergunta ansiosa:
- E agora, mãe, que é que eu faço?
- Vá brincar, minha filha!
- Não tenho ninguém pra brincar...
- Você já montou o Lego novo?
- Ainda não.
- Então, monte! Quero ver você fazendo coisas bem bonitas, tá? Quando estiver pronto, me chame! Você consegue fazer igualzinho ao da caixa! É tão habilidosa!
Ela foi. Jogou todas as pecinhas ao chão, colocou a caixa de pé, encostada à parede, para ir copiando. Direitinho. Era uma casinha, com homenzinhos, arvorezinhas, carrinhos, portinha, luzinha, e tudo mais. Tudo “inho”. Lindinho. Montou metade, talvez um terço. Era fácil.
Cansou. Quis jogar tudo, deixar desarrumado no chão... Impossível, claro. Guardou dentro da caixa.
- Não quero, mamãe. É muito chato!
-Puxa, filhinha, você faz coisas tão bonitas com o Lego! Que pena!
- E então, mãe, que é que eu faço agora?
- Não sei, meu bem... - A mãe, ocupada na organização da cozinha, continua: - E a Barbie nova? Você não quer brincar com ela? Vá para o seu quarto! Você já se esqueceu das roupinhas novas que fizemos para ela? E também para o Bob, não é, Maria?
A menina foi. Era verdade, pensou, a boneca tinha muitas roupinhas novas. Bonitinhas. Vestiu-a, montou a cama da Barbie, a cozinha da Barbie, a piscina da Barbie, o salão de beleza da Barbie... Tudo pronto, Bob veio visitá-la, com o novo calção de tênis, saíram. Pronto, acabou! Ia ler ou assistir televisão. Pegou um livro de Monteiro Lobato, já o havia lido três vezes, era legal! Quatro, cinco páginas. Desceu, foi assistir televisão: programa da Xuxa, desenho, desenho, desenho. Foi até a cozinha pegar alguma coisa para comer: bolacha de chocolate.
- Maria, o almoço está quase pronto! Bife à milanesa, como você gosta! Deixe a bolacha para comer na hora do lanche, de tarde. Tá certo, querida?
- Tudo bem. Sem qualquer hesitação ou reclamação, voltou ao programa da Xuxa. Mais cinco minutos sentadinha, esgueirou-se suavemente, foi até o quintal, pegou a Calói Cecizinha e saiu. Não avisou ninguém. Já ia voltar.









A rua era asfaltada, começou a tomar velocidade. O sol, esquentando.
Um ou outro carro passava por ela à direita. Cuidadosa, porém mais veloz. Os pinheiros da calçada faziam uma sombra gostosa, ela pedalava, deixava a bicicleta correr, quase sozinha... A rua acabou. Era um terreno baldio e ela continuava. Havia uma trilha, um pouco de lixo acumulado. Que cheiro! Vai em frente. Já está longe de casa.
“Nossa, por aqui nunca vim brincar. É bem mais bonito, quantas árvores! A trilha continua. Cada buraco ! É só desviar.
Uma subida, um morrinho, longe de casa. Uma parada, é bom para descansar um pouco. Do alto, dá para enxergar as casas lá embaixo: acho que aquela é a minha . É sim, o carro do papai na porta... Nossa, ele já chegou !”
Toma a bicicleta e continua. A mata é mais fechada, às vezes; por entre as copas das árvores, vê-se o céu. Lindo, azul! Livre! Pára, senta, tira o tênis, amarra-o no guidão da bicicleta: “Tomara que não me atrapalhe!” Respira fundo, cheirinho de mato, bom. Livre!
Continua. Altos e baixos, mais buracos, desvios, quase tombos, um tombo de verdade (tombinho...). Bate as mãos no joelho, tira o excesso de terra. Só arranhou, dói um pouco, mas já passa (“Antes de casar, sara.”). A velocidade agora é tanta, os buracos, valetas da estradinha ainda são muitos, sua bicicleta tem de ser Cross.
Claro, ela está treinando em sua bicicross! E percebe, de repente, que é um menino. Sem qualquer estranheza.
Com que delícia sente o vento bater em seu rosto, despentear seu cabelo. Pedala contra o vento, a velocidade sempre alta. Bom, muito bom, mesmo.Numa clareira da mata, cruzamento, encontra Maria, sua amiga. Também de bicicleta: Calói Ceci. “Uma companhia, até que era bom. Mas será que ela não ia atrapalhar?”
- Oi, Maria! Vamos comigo! Conheço um lugar lindo pra te levar! Venha, você vai gostar.
- João, é por essa estradinha aí?
- É.
- Então, não vou. Tem muito buraco, vou cair, me machucar.
- Cai nada. Eu vim lá de casa por ela e olhe bem: estou inteiro!
- E seu joelho?
- Ah, foi só um arranhãozinho. Nem doeu. Juro!
- Uhnn...
- Venha, Maria! É um lugar onde tem um riozinho, de água bem limpinha. A gente vê os peixinhos lá no fundo. Super bonito! E depois, a gente ainda toma banho de cachoeira! Tem uma cachoeirona!!! Você precisa ver!
- Ah, não vou mesmo. É perigoso. Lugar assim, a gente escorrega, se machuca.
- Tá bom. Vou sozinho.
- Tá.
- Puxa, mas eu queria tanto mostrar pra você... Você ia A - MAR! Venha!
- Você me ajuda?
- Claro!
Maria montou na bicicleta e acompanhou João. Ele lá na frente e ela, cuidadosamente, a cinqüenta, quase cem metros dele. Ele olha para trás:
- Maria, assim não dá! Sua bicicleta agüenta! Corra mais!
- Tenho medo, não consigo.
- Consegue sim. Faça como eu. Olhe aqui! - larga as mãos do guidão, exibindo-se. Quase cai. - Não, você não precisa fazer isso. É só pedalar mais forte, escolher o caminho, ter confiança, Maria! Isso! Venha, você está conseguindo! Venha do meu lado, assim a gente vai conversando.
- Então você não corre tanto?
- Tá bem.
Agora é um passeio. Um pouco de mãos dadas, continuam.
O calor é forte. O silêncio da mata - tão perto ou tão longe de casa? - os passarinhos cantando, o murmúrio das águas. O riozinho está perto.
Apeiam, largam a bicicleta no chão. Lado a lado vão caminhando, chutando pedrinhas, começam a correr até a margem do ribeirão. A água clarinha, fresca, passa por entre as pedras. No fundo, areia e peixinhos. Lavam o rosto, as mãos, os pés, entram vagarosamente na água rasinha. “Gelado. Bom.”
- E a cachoeira? Você mentiu: não estou vendo nenhuma.
- Você quer ver? É só continuar andando do lado do rio. Vamos!
O rio se alarga, forma como que um tanque, onde cai uma cascata bonita: “Véu da Noiva”.
- Que lindo! - faz uma pausa. - Mas é pequena... - reclama.
- Você gostou?
- Gostei.
- Quer nadar ali embaixo? É como uma piscina. Se você ficar debaixo da cachoeira, toma uma ducha.
- Que delícia!
As horas passam. Nadam, correm brincam, conversam. Dormem.
Ao acordar, Maria percebe que João fez uma fogueirinha. “Onde arranjou os fósforos?” O fogo começa a ficar alto, João coloca folhas secas, gravetos, a menina se assusta.
- João, estou com medo! Você viu o que eu vi?
- O quê?
- No meio do fogo... Se mexendo...
- São as chamas, Maria.
- Não, eu vi uma coisa. Esquisita.
- ... - Tem rabinho. Orelhas pontudas.
- ...
- Tá dançando...
- ...
Resoluto:
- É sua imaginação, Maria – e mexe com um graveto comprido no meio da fogueirinha.
- Estou ouvindo um barulho. Você não está?
- É o vento, uma brisinha.
- Será? Tô com medo.
Ele, para acalmá-la, joga areia e apaga o fogo.
- Viu? Pra que tanto susto? Que bobeira!
- Vamos embora? Tá ficando escuro. Tô com medo!
- Eu estou aqui e vou te proteger.
- Mamãe está preocupada comigo. E sua mãe também deve estar. Vamos!
- Não vou. Hoje vou dormir aqui. Não volto para casa. Amanhã, quem sabe?
- E comer? Você não está com fome?
- Só um pouquinho. Mas vou pescar.
- Como?
- Eu me arranjo.
- Eu vou embora.
- Pode ir.
- Sozinha? Você não me leva?
- É só seguir a trilha.
- Tenho medo.
- Deixe de ser boba. Você é muito tonta.
- Mas bem que você queria minha companhia, não é?
- Ahn ...
- Não é? Confesse!
- Tá bem, queria. Mas agora, se você quer ir embora, o problema é seu. Eu não vou.
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- Amanhã você volta?
- Ué, pra quê? Você não fica tão bem sozinho?
- Fico.
- Então?!
- É que... - pensando numa boa desculpa -... eu queria comer bolacha de chocolate. Daquela recheada, você sabe.
- Sei.
- Então é isso: você volta e me traz um pacote!
- Não sei...
- Traz, sim. Olhe, São Luís! Só desta que eu gosto... Ah, e também um pacote da de doce de leite !
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- Vou contar pra sua mãe.
- O quê?
- Que você está aqui, que não vai voltar pra casa, que você não jantou...
- Pra quê?
- Ora, ela deve estar preocupada!
- É, sim.
- Você quer que eu não conte?
- Você que sabe... Mas hoje não volto mesmo!
- Amanhã?
- Não sei.
- Vamos, venha comigo. Amanhã a gente volta.
- Maria, não adianta. Não volto mesmo. Você pode ir. Tome cuidado! Pode até avisar mamãe, você é que sabe... Amanhã eu volto. Você vem me buscar?
- Tá.
- Dá um beijo.
- Tchau!
Ela caminha, lentamente, olha para trás:
- Fique com Deus!
Maria caminhou solitária de volta para casa. Encontrar sua mãe. No entanto, seus passos eram cada vez mais lentos, sentia que lhe faltava algo.
Caminhava pensativamente, meditando, admirando e absorvendo a beleza a seu redor, aspirando o perfume da mata quase civilização. Não pode perder o encanto. Pára. Falta-lhe João. Não pode deixá-lo.
Ficar com ele? Talvez... Corre de volta para encontrá-lo.
- João, João, você precisa ficar comigo!
- Você voltou, Maria!
- Venha comigo!
- Agora?
- Claro!








E ele foi. Como? Parecia tão decidido a ficar... Mas foi. Foi mesmo! Ele era parte de Maria, não sabia explicar como nem por que, mas, naquele momento, percebeu que não a abandonaria. E partiram.
Assim, Maria chegou nova a sua casa. Montada em sua bicicleta, correndo, voando... Soltando as mãos do guidão.

Agora, também era João. E podia, daqui pra frente, realmente, tudo! Era a menina que podia tudo.

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